“Esse banco faz mal … sa£de”, diz aposentada do Banespa

(Florianópolis) Todo dia trabalhadores e trabalhadoras, mundo afora, têm em sua rotina movimentos repetitivos que, sem os devidos cuidados têm levado à aposentadoria precoce milhares de pessoas. Rotinas de trabalho que podem causar danos irreversíveis ao corpo e à alma de quem é acometido por Lesões por Esforços Repetitivos, as LER (rebatizadas pela Previdência Social com o nome de Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho, DORT).

 

A história da bancária Márcia Platt, de Florianópolis, ilustra de forma chocante esse problema, que pode aposentar um trabalhador não só do exercício da profissão, mas de sua vida pessoal. A lesão em Márcia deixou uma marca indelével no corpo: a mão direita tomou o formato de uma garra, não fecha nem abre totalmente. No rosto, nos olhos e nas palavras, sempre diretas, essa mulher de 49 anos deixa transparecer a mágoa, por todo o preconceito e discriminação que enfrentou, principalmente entre colegas de trabalho. Mágoa que vem lhe custando anos de psicoterapia. 

 

Concursada, Márcia praticamente começou a vida profissional em 1978 no Banespa, Banco do Estado de São Paulo (o banco deixou de ser público no dia 20 de novembro de 2000, quando foi privatizado e comprado pelo grupo espanhol Santander), na sede de Florianópolis. Cheia de entusiasmo pelo novo emprego, onde a atividade principal era o atendimento ao público, no início ela mal percebeu o estrago que o posto de trabalho e o excesso de tarefas iriam lhe causar. “Na minha época já havia cobrança por metas, pela venda de produtos bancários. E eu era uma das melhores vendedoras da agência”, conta ela.

 

Além da cobrança, os bancários conviviam com uma ameaça constante. Os colegas falavam da existência de uma lista “dos dez mais”, que continha o nome de futuros dez desempregados. Na ameaça, que existia mesmo, o assédio moral, conceito ainda desconhecido dos trabalhadores e fator de sério risco para a saúde física e mental de qualquer um.

 

O corpo dá um basta

Durante todo o expediente, Márcia ficava sentada em uma posição extremamente incômoda, de frente para a máquina datilográfica e de lado para o cliente. Para não perder tempo no preenchimento do cadastro – o tempo, sempre o tempo – a bancária movia só a cabeça e o pescoço para a direita, mecanicamente. Dezenas, centenas de vezes, todos os dias. As dores começaram a aparecer. Márcia pediu à chefia para trocar a posição da máquina, para ficar de frente para o cliente. O chefe disse que não era possível mudar o layout da agência. “Ele checava todos os dias se as máquinas nas mesas estavam perfiladas, retinhas”, lembra Márcia.

 

Quando abria contas de empresas, a bancária ficava bastante tempo com a cabeça flexionada para baixo, para ler longos contratos na íntegra. Depois grifava as palavras que deveriam ser datilografadas e digitadas. “Eu fazia o trabalho em duplicata, em triplicata”, diz Márcia. Aquela atividade contribuiu para o surgimento de fortes dores no pescoço e na coluna. Para atenuar as dores que sentia, Márcia passava o expediente à base de remédios, todos os dias. Já quase sem agüentar a jornada de trabalho, que se tornava um suplício, ela conseguiu uma transferência de setor. Não atenderia mais o público e pensou que tudo mudaria. “Tem dias que é difícil atender as pessoas, porque a gente tem que estar sempre sorrindo, bem-humorada. E trabalhar com dor o dia todo é um tormento”, lamenta.

 

Mas a nova rotina, que deveria ser de conferência de relatórios, acabou ganhando outras tarefas. A cada dia ela digitava mais. “Como eu era muito rápida, a chefia trazia mais e mais trabalho”, relata Márcia. As dores intensas continuaram. Até o dia em que o corpo não suportou mais e decidiu dar um basta. Foi em 1994, no refeitório, durante um rápido lanche. O braço direito de Márcia começou a se mover sozinho, descontroladamente. Assustada, ela foi a um ortopedista que, de imediato, lhe afastou do trabalho por trinta dias.

 

Márcia havia adquirido lesões graves nos ombros, no punho e cotovelo esquerdos. “Eu disse ao médico que não poderia sair porque tinha muito trabalho. Como as coisas iam ficar na agência?”, relembra ela, para quem o trabalho bancário era um motivo de orgulho e satisfação. Márcia ainda não sabia, mas jamais voltaria à sua atividade. Nesse período começou a via crucis em consultórios médicos e terapias, que dura até hoje, doze anos depois.

 

“Pra quê que eu sirvo?”

Afastada da rotina estressante da agência, do compromisso de ter horário contadinho no relógio, das lides domésticas e até do lazer, Márcia acabou entrando em depressão. “Fiquei sem amigos, porque a metade era do trabalho e todo mundo se afasta. Em casa não podia fazer nada. Não podia praticar esporte. Até meu relacionamento íntimo foi afetado. Pensei: ‘Meu Deus, pra quê que eu sirvo?`”, revela Márcia que, com medo da dor, acabava se esquivando até de abraços. O abrigo emocional ficou por conta da família, que sempre esteve a seu lado. A atenção dos dois filhos, então adolescentes, e do marido – colega de trabalho de Márcia e ele próprio portador de LER/DORT – foi fundamental. “Meu marido e eu não sabíamos, mas estávamos na lista dos ‘dez mais’”.

 

Durante o afastamento, vários colegas chegaram a lhe perguntar se o que ela tinha era lepra. A bancária aposentada lembra que, à época, havia um desconhecimento geral sobre a LER. Márcia teve as primeiras informações sobre o assunto por meio de uma cartilha do Sindicato dos Bancários de Florianópolis e Região. “Aí fui entender que o que eu e vários outros colegas sentíamos era decorrente de LER”, diz a trabalhadora lesionada. Um dos muitos médicos a quem Márcia recorreu chegou a dizer que ela reclamava porque era “gorda e manhosa”. Mesmo em depressão, ela decidiu ir atrás de mais informações e tentar ajudar a outras pessoas que também sofriam com LER.

 

Em 1996 fundou, com outras duas bancárias atingidas pelo mesmo problema, a Associação dos Portadores de LER (APLER Florianópolis). “Acredito que, com o tempo, os sindicatos foram tomando pé dessa situação, porque a procura caiu muito, tivemos dificuldades em manter a entidade aberta e decidimos encerrá-la”, explica Márcia, que foi presidenta da Associação. 

 

“Esse banco faz mal à saúde”

Os números na agência do Banespa onde Márcia trabalhou são, no mínimo, preocupantes – 16 bancários ficaram lesionados e, desses, dez foram aposentados precocemente. Márcia ingressou com ação na Justiça contra o Banespa, para reparar danos morais e materiais. E há um fato estarrecedor, não só segundo Márcia, mas também de acordo com a avaliação de um juiz: “O banco mantém até hoje o mesmo mobiliário da época em que fiquei lesionada e deixa claro que não tem nenhum zelo pela saúde de seus trabalhadores”. Indignada, essa mulher forte diz que uma empresa assim, sem compromisso deveria ter a porta lacrada. “Esse banco faz mal à saúde”, sentencia Márcia, que não desistiu de resgatar sua vida. Quando falo em futuro, ela conta, com um sorriso bonito, que está fazendo uma terapia onde usa argila e que está retomando seu lugar, aos poucos, sem pressa.

 

Fonte: Janice Miranda – Seeb Florianópolis e Região

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