ARTIGO: Kassab e o vagabundo

Por Gilson Caroni Filho*

 

Vai demorar muito tempo para que Samuel, sete anos, filho do microempresário Kaiser Paiva Celestino, apague da memória as imagens do pai sendo enxotado de um posto de saúde, em São Paulo, pelo prefeito Gilberto Kassab, aos gritos de “vagabundo, vagabundo". O que não deve tardar é a resposta à pergunta aflitiva que ele fez a Celestino, depois do incidente: “Pai, por que ele chamou você de vagabundo?” Alguém tem que lhe dizer que, por trás do destempero de Kassab, há uma ideologia enraizada no inconsciente político dos dominantes brasileiros. Uma concepção de Poder Público forjada na ótica de repulsa à "plebe fervilhante", tão ao gosto de Oliveira Vianna e de seu desapreço pelos instrumentos liberais de representação política. Assim, um manifestante é visto como um desocupado, alguém que não tem problemas, que só aparece para estragar solenidades ou atrasar medidas econômicas e sociais que terão de ser tomadas mais dia, menos dia, de qualquer maneira.

A truculência no posto de saúde Pereira Barreto, bairro de Pirituba, onde o prefeito inaugurava uma unidade ambulatorial, não mostra apenas a distância entre o Poder Público e o cidadão, mas a permanência de estruturas secularmente autoritárias da sociedade brasileira. O enorme hiato cultural e político que, desde as origens, marca a clivagem entre dominantes e dominados, impedindo a efetivação de um ordenamento democrático. Tomá-la como um descontrole pessoal ou, como preferem seus assessores, como reação de quem quer mudar a imagem, mas exagerou na "dose", é banalizar o protofascismo. Legitimá-lo como estratégia de poder aceitável é concordar com uma institucionalidade que nega a construção de espaços públicos capazes de assegurar a cidadania ativa.

Não haverá engenharia institucional inovadora na gestão da coisa pública enquanto o viés patrimonialista perpassar a relação entre representantes e representados. Não podemos falar em República enquanto a queixa de um cidadão, seja correta ou não, for considerada uma "afronta à cidade". A menos que, internalizando o receituário da autocracia, aceitemos que estabilidade democrática é expressão sinonímica de não-devir, do não-acontecimento, do não-política. Uma espécie de utopia autoritária onde a história é positivada, decantada de contradições e esvaziada do componente popular.

Enquanto prosperar a cultura da intolerância classista – e Pirituba não deixa de ser um bom exemplo disso – não restará ao homem comum outro gesto que não seja o da persignação ao ouvir a palavras "direito e ”Estado democrático”. Coisas que lhe soam tão acessórias quanto as veleidades de um "pensamento dasluspiano" ante a crise de perspectivas das forças conservadoras. A Folha de S. Paulo (7/2) registra a impressão de um cientista político notoriamente identificado com bloco liberal-conservador. Para Carlos Melo, do Ibmec São Paulo, "o ato pode ser usado para mostrar que Kassab tem autoridade". Haverá algo mais afinado com a percepção da Casa Grande do que essa afirmação? O senso comum oligárquico travestido de parecer acadêmico é desolador.

Vizinhos dão conta de que o microempresário chegou em casa "chorando como criança". Ao dizer que perdoa o prefeito e que foi seu eleitor, Kaiser cumpre a parte que lhe cabe nesse enredo. Seu choro foi lamento de senzala, tal como no velho samba da Portela. Mas outras escolas atravessam a avenida em sentido contrário. É hora do PFL mudar de nome, embora jamais mude de métodos.

 

* Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, e colaborador do Jornal do Brasil, Observatório da Imprensa e La Insignia. Escreveu este artigo para Carta Maior (www.cartamaior.com.br)

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