Terceirização tende a converter trabalhador em mercadoria, diz procurador

O procurador Ricardo José Macêdo de Britto Pereira, do Ministério Público do Trabalho, divulgou estudo sobre os efeitos perversos da terceirização. Ele foca os impactos sociais e trabalhistas e a análise da repercussão geral no Supremo Tribunal Federal (STF).

Trata-se de uma abordagem dos aspectos jurídicos, políticos e ideológicos que envolvem a questão da judicialização da politica e a politização da justiça.

Ricardo é especialista em terceirização. É subprocurador geral do Trabalho, doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito pela Universidade de Brasília, pesquisador e professor colaborador pleno do Programa de Pós Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília e colíder do Grupo de Pesquisa “Trabalho, Constituição e Cidadania”.

Leia a íntegra do artigo publicado no site da Associação Latinoamericana de Advogados Labolalistas (ALAL):

TERCEIRIZAÇÃO E AÇÃO CIVIL PÚBLICA:
Judicialização da política e a politização da justiça

(*) Ricardo José Macêdo de Britto Pereira

1. Terceirização e ativismo judicial. Em que direção?

A repercussão geral reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal no recurso extraordinário (ARE 713.211) sobre terceirização, que põe em questão os limites e os efeitos jurídicos estabelecidos na Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, vem provocando grande atenção e intensos debates pelos diversos atores que se ocupam de temas no âmbito do trabalho em nossa sociedade.

Diante da ausência de previsão expressa em lei impondo limitação à terceirização, o julgamento definirá se o Tribunal Superior do Trabalho, numa espécie de ativismo judicial, excedeu de suas atribuições, ao inviabilizar escolhas e atividades empresariais.

A expressão “ativismo judicial” é geralmente utilizada no sentido negativo, para censurar o Poder Judiciário, ao interferir em decisões que, a rigor, estariam a cargo do Legislativo e do Executivo. O Judiciário acaba assumindo uma feição mais política, de definição dos meios para alcançar fins preestabelecidos, em decorrência da paralisia dos poderes encarregados de tomar as providências a seu cargo. Esse é um aspecto do processo de judicialização da política que, por sua vez, leva à politização da justiça. Com as características das Constituições e dos conflitos sociais na atualidade, a politização já não mais consiste tanto na luta pela positivação de novos direitos, mas, sobretudo, pela disputa de interpretação dos direitos já consagrados.

Embora com esse viés crítico, o ativismo judicial é perfeitamente justificável nas sociedades atuais, marcadas pela intensificação e complexidade das demandas, que exigem respostas céleres e adequadas. Há algum tempo, vivencia-se uma reconfiguração dos poderes constitucionais e, em relação ao Poder Judiciário, ela é bastante evidente, considerando que inúmeras questões da vida em sociedade são hoje judicializadas, não podendo os seus órgãos deixarem de conferir solução a elas.

A Constituição de 1988 consagra um projeto extremamente ambicioso de transformações em vários âmbitos, principalmente no econômico e social. As normas constitucionais vinculam o Estado e a sociedade como um todo, mediante providências para a realização desse projeto, enumerando os direitos a serem efetivados. A inação institucional é inconcebível nesse contexto, de modo que a separação dos poderes, na sua versão tradicional, não se apresenta como garantia adequada em todos os casos.

Mais do que separação, há pressão mútua entre os poderes, a fim de propiciar os avanços determinados pelo texto constitucional. Nesse quadro, não é possível identificar, em todos os casos, esferas de atuação bem demarcadas e independentes. A Constituição dota os diversos atores de perfil político para avançar no sentido de implantar e consolidar o modelo de Estado e sociedade nela previsto.

Pode-se afirmar que o Supremo Tribunal Federal é o grande protagonista dessa tendência, especialmente para efetivar os direitos sociais previstos na Constituição de 1988. O tribunal passou a se ocupar da implementação e da correção de políticas públicas, suprindo a atuação deficitária dos Poderes Legislativo e Executivo.

O Tribunal Superior do Trabalho, ao consolidar sua jurisprudência conforme o enunciado da Súmula 331, nada mais fez do que, alinhado com o projeto constitucional, interpretar o ordenamento jurídico, para tratar dos conflitos resultantes da prestação de serviços por meio de empresas terceirizadas e adotar resolução uniforme para eles. Os critérios adotados para estabelecer os limites, atividade meio e fim, foram inclusive mais brandos do que na jurisprudência anterior (Súmula 256-TST).

O fato é que as demandas envolvendo prestação de serviços terceirizada passaram a ser frequentes no Poder Judiciário, para as quais não se poderia deixar de oferecer respostas, considerando o seu impacto nas condições de trabalho previstas no ordenamento jurídico. Por vários anos a jurisprudência do tribunal foi observada, propiciando a previsibilidade das decisões. Afinal, o empresariado favorável à terceirização sempre se valeu do argumento de que a empresa deve dedicar-se a sua atividade principal, podendo transferir a outras os afazeres acessórios.

Porém, a partir de uma série de iniciativas contra a referida jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, especialmente a retomada do Projeto de Lei 4.330/2004, de autoria do Deputado Sandro Mabel, o discurso foi modificado, com o objetivo de alcançar a liberação integral da terceirização. O argumento da segurança jurídica foi reforçado, mas agora para dirigir-se contra o critério da atividade meio e fim, aplicado conforme a súmula do Tribunal Superior do Trabalho.

A repercussão geral reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal vem ao encontro do anseio empresarial, uma vez que se fundamenta na violação à liberdade de contratação extraída, por sua vez, do princípio da legalidade. O raciocínio levou ao entendimento de que na ausência de lei limitando a terceirização, a liberdade de contratação extraída da Constituição seria ampla. Essa interpretação, baseada na violação ao princípio da legalidade, foi reiteradamente rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal em julgamentos anteriores.[3]

Embora a liberdade contratual possa ser extraída de diversos dispositivos da Constituição, ela não se sobrepõe aos direitos sociais consagrados em seu texto. Nesse aspecto, o reconhecimento da repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal, com base no princípio da legalidade e garantia da liberdade contratual, caminha na direção contrária às imposições de avanços para a realização do projeto constitucional. Além disso, reforça o poder econômico em detrimento das conquistas sociais históricas dos trabalhadores, desequilibrando a disputa interpretativa dos dispositivos constitucionais.

O Supremo Tribunal Federal atua, como esse entendimento, a serviço de uma ideologia, no significado forte da palavra, para contribuir na difusão de uma falsa representação da realidade. O Tribunal atribui, de forma inédita, aos empresários os meios para obter vantagens econômicas, à custa do patamar social incorporado na Constituição. Caso o recurso seja provido, o Estado promoverá o capital predatório, disfarçado pela anunciada liberdade plena de contratação, cuja consequência no passado foi a denominada “questão social”. O reforço ideológico para encobrir o problema, com a participação do Supremo Tribunal Federal, operará para neutralizar as resistências e as críticas contra o processo de terceirização sem limites.

Como tratei em outro local:

Essa ideologia a serviço do poder econômico é capitaneada por grandes organizações, cada dia mais difíceis de serem identificadas, considerando que já não possuem estruturas, sedes e locais definidos, mas redes que se conectam e desconectam a todo momento. São, sobretudo, organizações de capital, geralmente inacessíveis aos consumidores insatisfeitos e às autoridades dos Estados. A lograrem a ampliação da terceirização, tampouco terão trabalhadores, completando o ciclo de esvaziamento e de descaracterização como centros de imputação de responsabilidades sociais por seus empreendimentos.[4]

Desse modo, passa a ser inevitável o questionamento acerca da repercussão geral como mecanismo de tutela dos direitos sociais dos trabalhadores.[5]

Lara Parreira e Renata Dutra[6] fazem um paralelo entre a repercussão geral no Supremo Tribunal Federal (ARE 713.211) e o caso Lochner vs. New York, julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no ano de 1905, em que foi considerada inconstitucional lei que regulava a jornada máxima dos padeiros, por afronta a décima quarta emenda à Constituição norte-americana. A “Suprema Corte entendeu que seria incabível a regulação por parte do estado na forma de legislação trabalhista da jornada de trabalho dos padeiros, por não estar provada a condição de insalubridade.” Ressaltam as pesquisadoras que esse entendimento foi posteriormente superado pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América no caso West Coast Hotel vs. Parrish, no ano de 1937.

De fato, caso o Supremo Tribunal Federal confirme a tese da repercussão geral no julgamento do recurso extraordinário, estaremos diante de um enorme retrocesso, que culminará num padrão de cidadania de baixa intensidade e produzirá reflexos em todos os setores da sociedade.

2. A politização da questão e a consideração dos interesses em jogo

A decisão sobre tema de tamanha relevância para a sociedade brasileira pressupõe a representação equitativa dos interesses em jogo e a participação ampla dos atores envolvidos. Até o presente momento, apenas a versão empresarial chegou ao Supremo Tribunal Federal, sendo necessária uma distribuição dos argumentos e das informações sobre os efeitos da terceirização no trabalho e na vida dos trabalhadores.

Isso só é possível com a convocação de uma audiência pública, para que a versão dos trabalhadores tenha penetração no tribunal e sensibilize os seus integrantes. A precipitação do julgamento, sem essa providência, representa postura autoritária, em total desacordo com diversas de suas decisões que enaltecem a interpretação constitucional como processo aberto.

A terceirização vem afetando profundamente as condições de trabalho asseguradas na Declaração de Princípios e Direitos Fundamentais da OIT de 1998, que reúne quatro categorias de direitos: liberdade sindical e negociação coletiva, trabalho infantil, trabalho forçado e discriminação. A terceirização desorganiza os trabalhadores e os sindicatos, discrimina os trabalhadores terceirizados em relação aos empregados da tomadora, facilita a prática de trabalho em condições análogas[7] a de escravo e de trabalho infantil.

A discriminação talvez seja o efeito mais evidente da terceirização, sobretudo quando os terceirizados prestam serviços no mesmo ambiente de trabalho dos empregados da tomadora de serviços. Não é só a discrepância nas condições de trabalho, mas o tratamento dispensado aos trabalhadores, como elemento estranho ao pessoal da empresa, que os coloca em situação de invisibilidade.

Como acentuam Pedro Mahin e João Gabriel[8]:

O pronunciamento do Supremo Tribunal Federal acerca da matéria, a partir de uma leitura fortemente seletiva do que seja a livre iniciativa no contexto da Carta de 1988, acaba por esvaziar-lhe o caráter político. O foco do debate judicial recai sobre o texto constitucional – a proibição genérica de terceirização da atividade-fim é compatível com o princípio da livre iniciativa? -, desviando o olhar daquela que é a questão real a ser resolvida: permitiremos a coisificação ampla de homens e mulheres trabalhadoras ou preservaremos um patamar mínimo de dignidade nas relações de trabalho?

Os dados apontam igualmente o maior adoecimento no trabalho dos terceirizados, além de sofrerem acidentes de trabalho com mais frequência. Um dos propósitos da terceirização é transferir responsabilidades, gerando descasos com as medidas de saúde e segurança no trabalho previstas em lei.[9]

3. Os riscos de ampliação dos efeitos da terceirização

A retórica da terceirização nega que os referidos problemas decorram dessa estratégia gerencial. Desse modo, não há uma condenação por parte do segmento empresarial que pretende a regulamentação da terceirização, quanto a sua utilização para explorar trabalhadores e rebaixar as condições de trabalho. Essa postura contribui para degradar e corromper a terceirização, contrapondo-se à publicidade que a difunde como instrumento de gestão eficiente, legítimo e moderno.

Na precisa observação de Michael Sandel[10], corrupção não é apenas uma questão de pagamento indevido e de suborno. Corromper um bem ou uma prática é atribuir-lhe um valor inferior a ela, depreciando-a.

A terceirização, além de prática corrompida, figura como mecanismo de corrupção, principalmente quando realizada pela administração pública.[11]

Essa falta de interesse por parte do empresariado de censurar os efeitos destruidores da terceirização confirma a tese de Márcio Tulio Viana[12] de que a terceirização é uma modalidade de poder, por cujo exercício os empresários vêm logrando debilitar o Direito do Trabalho, desorganizar os trabalhadores e afastar os sindicatos.

O conceito chave da linha argumentativa empresarial é “segurança jurídica”, que passou a ser o referencial mágico. A segurança jurídica perseguida no caso é a preservação da capacidade da terceirização de seguir provocando e de ampliar as agressões danosas aos trabalhadores, sem barreiras. Os limites que foram consagrados pela jurisprudência, estabelecendo o que pode e o que não pode transferir a terceiros, embora observados há décadas, passaram a ser desestabilizadores. A neutralidade com que é tratada a matéria oculta a questão central de todo o problema: segurança jurídica para quem e para quê?

Num momento de ampliação do poderio econômico, pretende-se eliminar o limite jurisprudencial, para consolidar a terceirização como forma barata e irresponsável de contratação de pessoal, que oferece incrível vantagem comparativa no mercado.

Conforme Dari Krein[13]:

O processo de terceirização baseado na redução de custos tende a fortalecer as relações de trabalho mais heterogêneas, incluindo o trabalho por conta própria sem proteção social e contratação de trabalhadores sem registro como forma de obter competitividade para sobreviver no mercado.

Pedro Augusto Nicoli[14] comenta a tragédia que matou, em 2013, 1138 trabalhadores e feriu mais de 2000, no complexo têxtil Rana Plaza em Bangladesh. O edifício em que funcionavam várias fábricas têxteis, fornecedoras de marcas mundialmente conhecidas, não suportou o peso de milhares de pessoas e do maquinário e acabou desabando. Na análise do pesquisador:

O que um evento como esse revela, em última análise, é uma correlação estrutural entre as práticas produtivas e “técnicas de gestão” do capitalismo global e os efeitos desumanizadores do trabalho explorado sem limites. Não se trata de uma mera fatalidade, um acaso ou imprevisibilidade. Em esquemas de terceirização há, em verdade, uma relação de assunção consciente de riscos pela diminuição das proteções. São riscos que, além de conhecidos e assumidos, chegam a ser estimulados e contabilizados para o aumento da lucratividade na produção.

4. Terceirização e ação civil pública

A ação civil pública apresenta-se como mecanismo de reação, para preservar o ordenamento jurídico, intensificando sua importância, caso o Supremo Tribunal Federal libere a terceirização. Essa ação constitucional enfrenta as violações ou ameaças a diretos na sua integralidade, e não por partes, mediante condenações e multas elevadas.

De forma paralela às investidas para a expansão da terceirização, detectam-se movimentos de ataques e resistências às ações coletivas, no intuito de que as condenações e as responsabilidades sejam aplicadas levando-se em conta os indivíduos e não a coletividade.

Porém, com o sistema constitucional e legal de tutela coletiva atualmente vigente e os avanços obtidos na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior do Trabalho, possíveis retrocessos devem ser considerados vedados pelo texto constitucional. Esses avanços podem ser expressados com o destaque de alguns pontos centrais: superação das objeções à legitimidade do Ministério Público do Trabalho e dos sindicatos; localização constitucional do conceito de interesses que competem a essas instituições defender; e reconhecimento de dano moral coletivo pela gravidade da lesão, pelo fato de alcançar a coletividade, independentemente de prova quanto a seus efeitos.[15]

O Supremo Tribunal Federal, em decisão memorável acerca da legitimidade do Ministério Público, interpretou o artigo 127 de forma magistral, para incluir em seu conteúdo os valores essencial de nossa ordem constitucional. “Sempre que se disser com a defesa de interesses vinculados à cidadania, à dignidade da pessoa humana, não só quanto à ordem jurídica, o artigo 127 autoriza, desde logo, a ação do Ministério Público.” (RE 161.231-3).

Os sindicatos também receberam o reconhecimento do Supremo Tribunal Federal para atuar, em toda a sua amplitude, na defesa dos interesses individuais e coletivos da categoria (art. 8º, III – RE 193.503).

Na hipótese de o Supremo Tribunal Federal prover o recurso extraordinário para ampliar a terceirização, a realidade e os efeitos dessa prática terão que ser revelados, para que as ilicitudes, não mais na origem, mas nos seus resultados, sejam sancionadas ou impedidas conforme o regramento constitucional e legal, mediante condenações por danos coletivos.

Até o momento, a licitude ou não da terceirização vem sendo determinada pelo exame da etapa do processo produtivo de bens e serviços que é realizado pela empresa tomadora dos serviços. A discussão não se restringe a essa descrição de uma atividade para identificar em que ponto ela pode ser segmentada e transferida a outro.

Devem-se inserir na análise da licitude da terceirização elementos normativos. Se sua utilização visa dificultar ou inviabilizar direitos constitucionais, se é adotada para fraudar ou desvirtuar a legislação trabalhista, se acarreta discriminação ou se desorganiza os trabalhadores, reduzindo o patamar de direitos ou inviabilizando a atuação sindical, evidentemente ela não se enquadra como lícita, justamente em razão das violações ao ordenamento jurídico.

A ilicitude não corresponderá mais à terceirização em si, mas a seus efeitos que afrontam o ordenamento jurídico, como a discriminação no trabalho, a desorganização coletiva, as condições degradantes e análogas a de escravo, as violações às normas de saúde e segurança no trabalho, entre outras.

É importante ficar bem claro para os empresários, que a Constituição jamais os legitimou, como jamais os legitimará a adotar práticas que violem os direitos sociais dos trabalhadores.

Cabe ao Tribunal Superior do Trabalho reforçar a sua jurisprudência que consagra a legitimidade do Ministério Público do Trabalho e dos sindicatos, para eliminar de uma vez por todas com a persistente e infundada alegação de ilegitimidade desses atores para a defesa de interesses e direitos coletivos. É necessário seguir avançando com sua jurisprudência, para admitir, por exemplo, a inversão do ônus da prova, como aliás prevê o artigo 6º da Lei 8.078/1990. E mais, rejeitar a incidência da prescrição nas ações civis pública, para evitar que situações de grave violação ao ordenamento jurídico, que afete à coletividade, se consolidem pelo transcurso do tempo.

É importante, igualmente, admitir a cobrança da multa para assegurar o cumprimento das obrigações de fazer e não fazer antes do trânsito em julgado, como permitem os artigos 84 do CDC e 461 do CPC, considerando que o artigo 12, § 2º, da Lei 7.347/1985, se foi recepcionado pela Constituição, o que não se mostra adequado, foi inquestionavelmente revogado pelas citados dispositivos legais. Por fim, cumpre determinar a remessa necessária no caso de carência ou improcedência da ação civil pública, como previsto na Lei 7.853/1989.[16]

Portanto, os empresários devem refletir antes de celebrar eventual decisão do Supremo Tribunal Federal que elimine os limites estabelecidos pela jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho na prestação de serviços terceirizada. E principalmente avaliar se a adoção de um instrumento degradado contribui para a imagem das empresas e o êxito dos negócios.

Nesse sentido, é a advertência da filósofa espanhola Adela Cortina[17]:

As organizações, assim como as pessoas, forjam um caráter ao longo de suas vidas, caráter pelo qual se identificam e pelo qual os demais a identificam… As organizações tomam decisões, iguais a pessoas, e podem se responsabilizar por elas. As organizações são, pois, agentes morais, não só as pessoas o são, possuem liberdade para forjar um caráter ou outro. Liberdade condicionada externa e internamente, como toda liberdade humana.

Em outro texto sobre essa mesma matéria, assim observei:

Os valores da relação pessoal de trabalho reforçam uma dinâmica própria de mercado, baseada na cultura da confiança, do prestígio e do respeito, que costuma gerar e preservar benefícios para toda a sociedade. O seu reverso é o capitalismo predatório, orientado pela selvageria e competição sem limites, que corrompe pessoas e práticas e geram riquezas concentradas à custa de passivos sociais e econômicos irrecuperáveis.

A terceirização aqui se encaixa, ao romper o vínculo pessoal de trabalho, destruir os seus valores, deslocar a assunção dos riscos da atividade econômica e a responsabilidade pelas prestações. A terceirização tende a converter o trabalhador em mercadoria, depreciar o valor do seu trabalho, utilizá-lo comercialmente e descartá-lo quando obsoleto, por doenças e inutilidade.[18]

O trabalhador não é um meio e muito menos mercadoria. Não possui preço, mas dignidade. Os propósitos de converter trabalhadores em coisas serão sempre duramente combatidos pelo Ministério Público do Trabalho, por meio de pedidos de pesadas multas e elevadas indenizações por dano moral coletivo.

[1] Texto elaborado a partir da exposição no Seminário “A terceirização no Brasil: impactos, resistências e lutas” realizado em Brasília, nos dias 14 e 15 de agosto de 2014.

[2] Subprocurador Geral do Trabalho. Doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madri. Mestre em Direito pela Universidade de Brasília, Pesquisador e professor colaborador pleno do Programa de Pós Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Colíder do Grupo de Pesquisa “Trabalho, Constituição e Cidadania”.

[3] Sobre a jurisprudência anterior do Supremo e todo o histórico da repercussão geral, consultar DELGADO, Gabriela Neves e AMORIM, Helder Santos. Os limites constitucionais da terceirização. São Paulo, LTr, 2014. MARTINS, Milena Pinheiro. A terceirização e o Supremo (parte 4): A terceirização e o princípio da legalidade. Disponível em http://trabalho-constituicao-cidadania.blogspot.com.br/2014/07/a-terceirizacao-e-o-supremo-parte-4_7.html. Acesso em 29.10.2014.

[4] PEREIRA, Ricardo José Macêdo de Britto. Terceirização, CLT e a Constituição. Correio Braziliense. Caderno Direito e Justiça, 16 de setembro de 2013.

[5] SANTOS, Rodrigo Leonardo de Melo. A terceirização e o Supremo (parte 5): o que esperar da repercussão geral em termos de direitos trabalhistas. Disponível em http://trabalho-constituicao-cidadania.blogspot.com.br/2014/07/a-terceirizacao-e-o-supremo-parte-5.html. Acesso em 29.10.2014.

[6] BORGES, Lara Parreira de Faria e DUTRA, Renata Queiroz. A terceirização e o Supremo (parte 3). Sobre a liberdade de precarizar: o Supremo e o recuo da história. Disponível em http://trabalho-constituicao-cidadania.blogspot.com.br/2014/06/a-terceirizacao-e-o-supremo-3-sobre.html. Acesso em 29.10.2014.

[7] FILGUEIRAS, Vitor Araújo. Terceirização e trabalho análogo ao escravo: coincidência?. Disponível em

http://trabalho-constituicao-cidadania.blogspot.com.br/2014/06/terceirizacao-e-trabalho-analogo-ao.html. Acesso em 29.10.2014.

[8] TRINDADE, Pedro Mahin Araujo Trindade e LOPES, João Gabriel Pimentel. A terceirização e o Supremo (parte 2): o STF e a terceirização da política. Disponível em http://trabalho-constituicao-cidadania.blogspot.com.br/2014/06/o-stf-e-terceirizacao-da-politica.html. Acesso em 29.10.2014.

[9] SILVA JÚNIOR, Antônio Braga. A terceirização e o Supremo (parte 6): a terceirização do risco no ambiente de trabalho. Disponível em http://trabalho-constituicao-cidadania.blogspot.com.br/2014/07/a-terceirizacao-do-risco-no-ambiente-de.html. Acesso em 29.10.2014.

[10] Sandel, Michael J. O que o dinheiro não compra. Os limites morais do Mercado. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro, Civilização brasileira, 2012.

[11] MOUSINHO, Ileana Neiva. Terceirização, corrupção, a administração refém e a falácia da eficiência. Disponível em http://trabalho-constituicao-cidadania.blogspot.com.br/. Acesso em 30.10.2014.

[12] VIANA, Márcio Tulio. “As várias faces da terceirização.” Revista da Faculdade de Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 54, p. 141-156, jan/jul-2009.

[13] KREIN, José Dari. “As relações de trabalho na era do neoliberalismo no Brasil.” Debates contemporâneos. Economia social e do trabalho. Org. Eduardo Fagnani. Campinas, Unicamp, CESIT, 2013, p. 199.

[14] NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. A face trágica da terceirização trabalhista. Do caso Rana Plaza ao dilema brasileiro. Disponível em http://trabalho-constituicao-cidadania.blogspot.com.br/2014/10/a-face-tragica-da-terceirizacao.html. Acesso em 29.10.2014.

[15] PEREIRA. Ricardo José Macedo de Britto. Ação civil pública no processo do trabalho. Salvador, Juspodium, 2014.

[16] Op. cit.

[17] CORTINA, Adela. “Las tres edades de la ética empresarial”. Construir confianza. Madrid, Trotta, 2013, p. 18.

[18] PEREIRA, Ricardo José Macedo de Britto Pereira. Terceirização versus proteção constitucional. Correio Braziliense. Caderno Direito e Justiça. 04.08.2014, p. 3.

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