Terceirização é retrocesso civilizatório, denuncia Paulo Moreira Leite

Paulo Moreira Leite
Brasil 247

Marcada para hoje, na Câmara de Deputados, a votação do projeto de lei 4330, que permite a terceirização sem limites dos contratos de trabalho, representa um encontro dos brasileiros com sua história. Ao contrário de outros momentos da evolução de um país, porém, desta vez o encontro representa uma tentativa do obrigar o Brasil e os brasileiros a andar para trás.

Na prática a eventual aprovação do 4330 é muito mais do que uma tentativa de abolir uma legislação que assegura um padrão mínimo de direitos a quem, biblicamente, paga o próprio sustento com o suor do rosto. Considerando a importância essencial do trabalho na vida das pessoas e na segurança das famílias, o projeto representa um retrocesso civilizatório. Nem a ditadura militar de 1964, articulada e promovida pelos adversários históricos da Consolidação das Leis do Trabalho, e que assegurava suas vontades com fuzis e canhões, ousou promover um ataque dessa natureza. Como novidade legal, o regime militar a aboliu a estabilidade no emprego, que impedia demissões de quem completava dez anos na empresa. Mas a ditadura criou o FGTS, que permitiu a cada assalariado fazer suas economias e, em caso de demissão, sacar um dinheiro para enfrentar uma maré previsível de dificuldades e até pagar a casa própria. Meio século depois, até a sobrevivência do FGTS está em risco, num jogo de esconde-esconde que envolve as responsabilidades das empresas que irão responder pela contratação dos trabalhadores.

Em 1988, quando o país formulou a Constituição em vigor, o debate envolvia a ampliação de direitos. Ocorreram melhorias parciais mas o processo de criação de outras melhorias foi bloqueado por uma aliança conservadora que se impôs na ultima fase de votação. Agora, quer-se abolir conquistas que contribuíram, decisivamente, para que o país se tornasse uma nação de renda média, com serviços públicos que deixam muito a desejar mas apresentam vantagens reconhecidas em comparação com economias semelhantes. As leis trabalhistas brasileiras tem um elemento insuportável para uma parcela da elite brasileira porque suas leis e benefícios permitem uma espécie de distribuição de renda permanente e institucionalizada, a margem da luta selvagem dos mercados.

Como bem demonstrou o professor Wanderley Guilherme dos Santos, o combate a CLT é a única questão relevante que unificou nossa classe dominante nos últimos 70 anos.

Em 2015, não há exagero em dizer que o principal argumento a favor da terceirização retoma a retórica que permitiu aos escravocratas do século XIX fazer do Brasil o penúltimo país do continente a abolir o cativeiro. Pode ser uma tese deselegante. A lembrança de que fomos um país que por mais de três séculos sobreviveu com a exploração de negros acorrentados nunca será agradável — mas é indispensável para se entender a cultura do trabalho que permanece no país, e que estará em jogo na votação da 4330.

Dizia-se, nas vésperas do 13 de maio de 1888, que o fim da escravidão iria gerar custos imensos e traumas de diversa natureza a economia, trazendo gastos impagáveis para quem seria obrigado a honrar essa novidade imensa e subversiva que era o salário. O máximo que se admitia, até então, eram os escravos de ganho, uma espécie de terceirizado do século XIX brasileiro. No contexto escravocrata, era um pequeno avanço, vamos combinar. Com cestas e sacos no ombro, eles saíam pelas ruas das cidades para vender produtos do trabalho dos escravos de casa e da fazenda. Como estímulo, tinham direito a embolsar uma pequena parcela daquilo que entregavam na Casa Grande. Numa visão miserável sobre a evolução das sociedades, não se enxergava o progresso permitido apenas a sociedades de homens livres — seja na economia, na política, na cultura.

O que se diz, agora, é que os custos do emprego formal se tornaram incompatíveis com os investimentos e o crescimento. Sem muitos retoques, o que se quer é o retorno do escravo de ganho. Vamos receber por cocada vendida, por roupa costurada?

Na década de 1990, quando a elite brasileira importou as propostas da contrarevolução conservadora de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, os célebres analistas de recursos humanos diziam que o trabalho de vendedor ambulante, desses que vende guarda-chuva numa barraquinha, podia ser mais conveniente e promissor do que de um operário registrado na industria de automóveis, com férias e 13o. Isso era dito em palestras, reproduzido em jornais e revistas. Era uma forma de sustentar a tese que empregos ruins, mal remunerados, podiam beneficiar um número maior de pessoas, enquanto empregos bons, com benefícios pouco mais do que elementares, estimulavam a preguiça e o comodismo.

A dificuldade, nessa teoria, é que ela é desmentida em todos seus aspectos por fatos ao alcance de todos. Fica difícil sustentar que as leis trabalhistas prejudicam a maioria dos brasileiros quando se verifica que, entre 2003 e 2014, o número de empregos formais passou de 29,5 milhões para 47,5 milhões, conforme dados do RAIS. No mesmo período o desemprego caiu de 12,3% para 5,3% em 2013, o patamar mais baixo já registrado, diz o IBGE.

O aspecto escandaloso do 4330 encontra-se aí. O país sabe, por experiência própria, que não representa nenhum benefício real para a maioria dos brasileiros. A década de 1990, das privatizações e da desregulamentação, também foi o apogeu dessa forma selvagem de terceirização que é a informalidade. A taxa de desemprego aberto saltou de 8,4% em 1995, primeiro ano do governo Fernando Henrique Cardoso, para mais de 12%, um crescimento superior 50%. Embora tenha anunciado o fim da Era Vargas no discurso de posse, FHC enfrentou uma resistência que não permitiu um ataque frontal a CLT, obrigando a um ataque pelas bordas. A economia transformou-se numa máquina de destruição de empregos formais: foram menos 129 339 em 1995, menos 582 000 em 1998, 1menos 98 000 em 1999, informa o Caged. A participação dos salários no PIB caiu três pontos do PIB.

O projeto 4330 não será debatido e quem sabe aprovado por nenhuma causa nobre, nenhuma razão benéfica. Não passa de uma utopia negativa e retardatária, que tem sido critica e abandonada, sistematicamente, pelos países onde a informalidade se tornou a regra. Na conjuntura brasileira, é acima de tudo uma oportunidade econômica, um negócio de ocasião.

Depois de arrematar, na campanha de 2014, a formação do mais conservador Congresso desde a democratização do país, patrocinando candidaturas de acordo com seu feitio e interesse, as grandes empresas instaladas no país estão cobrando a conta. Este ambiente de liquidação explica o esforço para colocar em votação uma proposta vergonhosa.

Do ponto de vista político, nada tão atual para demonstrar a urgência de uma reforma política. Do ponto de vista social, poucas vezes os interesses de pobres e ricos, de trabalhadores e empresários, ficaram tão evidentes. Sem o imenso caixa financeiro do setor privado, autorizado a alugar a democracia a seu prazer e gosto — e corromper sempre que possível — a 4330 nunca teria sido mais do que um dos muitos projetos folclóricos que circulam pelo Congresso e ninguém tem coragem de colocar em votação pela certeza do ridículo.

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