Carta Maior: o circuito de bancos internacionais que lava o dinheiro de ditadores

Página 12
Eduardo Febbro
(Publicado na Agência Carta Maior)

Um crime contra a humanidade. Silencioso, em violência aparente. Uma espantosa empresa de exploração dos recursos dos povos levada a cabo com a infindável cumplicidade do sistema bancário mundial. As fortunas dos ditadores dormem nos bancos ocidentais o doce sono dos lucros enquanto dezenas de milhares de pessoas morrem de fome ou não tem recursos para pagar um tratamento contra a Aids.

Jean Claude Duvalier, no Haiti, Ben Alí, na Tunísia, Hosni Mubarak, no Egito, Joseph Mobutu, no Zaire (hoje República Democrática do Congo), Sanu Abacha, na Nigéria, Omar Bongo, no Gabão, Manuel Noriega, no Panamá, Mu-ssa Traoré, no Mali, Augusto Pinochet, no Chile, Muammar Kadafi, na Líbia, Ferdinando Marcos, nas Filipinas e Sassu N’Guesso, no Congo Brazaville – as fortunas destes tiranos diplomados depositadas nos bancos internacionais ou transformadas em fabulosos investimentos imobiliários em Londres, Paris, Nova York ou Dubai ultrapassam a imaginação.

Há alguns dias, a União Europeia decidiu congelar os bens do fundo soberano líbio, o Libyan Investment Authority (LIA), e do banco central líbio. Os dois depósitos representam 150 bilhões de dólares. Colossal. A revista de gestão de ativos My Private Banking calcula que 33% das fortunas da África e do Oriente Médio depositadas no estrangeiro estão nos bancos suíços, o que representa 74 bilhões de dólares. Cada ano, entre 20 e 40 bilhões de dólares saem ilegalmente dos países em via de desenvolvimento. Nos últimos 15 anos só 5 bilhões foram restituídos. A Suíça administra 30% dos bens offshore do mundo e Londres uma quarta parte.

Os déspotas ou políticos corruptos que levam o dinheiro para o exterior têm um nome específico na linguagem bancária: Politically exposed individuals (indivíduos politicamente expostos). Isso não os impede, no entanto, de colocar seu dinheiro onde bem entender. E há alternativas de todas as cores. Os muito eficazes e discretos “shadow banking” (bancos da sombra) se encarregam de limpar o dinheiro manchado de sangue. A imprensa inglesa calculou que a fortuna do clã Mubarak chega a cerca de 70 bilhões de dólares. O ditador tunisiano foi muito mais modesto na exploração de seu povo, com uma fortuna de 5 bilhões de dólares, praticamente a metade do que foi roubado pelo déspota Ferdinando Marcos, nas Filipinas, durante o quarto de século no qual martirizou seu país. Diante deles, o ditador haitiano Jean-Claude Duvalier, Baby Doc, parece um pobretão com seus 200 milhões de dólares transferidos para a suíça. O pobre Augusto Pinochet e seus 20 milhões de dólares roubados assemelha-se a um triste mendigo de um bairro rico (dinheiro depositado no Riggs Bank, dos Estados Unidos, e daí, em paraísos fiscais).

O ex-presidente do Gabão, Omar Bongo, tem 39 propriedades na França, 70 contas bancárias e nove automóveis de luxo. Sassu N’Guesso conta com 18 propriedades e 112 contas bancárias abertas na França. Ao cabo de intermináveis processos judiciais, a Justiça francesa aceitou que abrisse uma investigação sobre esses “bens mal adquiridos”. O sociólogo e político Jean Ziegler, hoje vice-presidente do Conselho de Direitos Humanos da ONU, calcula que “dos 905 bilhões de ativos estrangeiros na Suíça, 280 bilhões vêm dos países da Ásia, América Latina e África. Em cerca de 90% dos casos, trata-se de dinheiro roubado dos povos mais pobres do planeta”.

Os inescrupulosos Joseph Mobutu, do Zaire, Sanu Abacha, da Nigéria, Omar Bongo, do Gabão, e Mussa Traoré, de Mali, são um exemplo ilustrado da análise de Jean Ziegler. Ao cabo de cinco anos de um poder despótico, o nigeriano Abacha desviou 2,2 bilhões dos caixas do Estado. Traoré tinha 2,4 bilhões de dólares na Suíça e em Mônaco. A Confederação Helvética identificou 3,4 bilhões de dólares pertencentes ao ex-presidente do Zaire, Joseph Mobutu – 34 anos no poder – e essa soma é apenas uma fração dos 10 bilhões que ele levou. Um informe do Banco Mundial calculou moderadamente que os fundos roubados cada ano por ditadores de seus povos oscilam ente 20 e 40 bilhões de dólares.

A sede desses assassinos de suas próprias sociedades com a cumplicidade do sistema bancário internacional não tem limites. A impunidade e a conivência do Ocidente são perfeitamente assimiláveis a crimes contra a humanidade quando se sabe que apenas 100 bilhões de dólares permitem tratar durante um ano a 600 mil pessoas doentes de Aids. No entanto, no seio do famoso e moralizador G-20, países como Alemanha e Japão ainda não ratificaram a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (CNUCC), a Convenção de Mérida, como fez a Argentina, em 2006.

As rotas dessa exploração são conhecidas por todos: Londres, Luxemburgo, Suíça, Bélgica, Mônaco, as ilhas anglonormandas, as ilhas Caiman. O dispositivo Stolen Assets Recovery que a ONU e o Banco Mundial empregam para combater a corrupção choca-se frequentemente com as argúcias legais. O Stolen Assets Recovery colaborou com o Estado haitiano no procedimento legal para a restituição de 7 bilhões de dólares da família do ditador Jean-Claude Duvalier congelados na Suíça. O Estado suíço se dispôs a colaborar, mas, depois, a Corte Suprema helvética anulou a querela.

No entanto, para os atores da anticorrupção, as revoltas no mundo árabe e a posterior onda de bloqueio de contas e congelamento de fundos mudarão essa situação. Daniel Lebègue, presidente da Transparência Internacional França, destacou que se “percorreu em três semanas mais caminho que ao longo de 15 anos”. As atribulações político-financeiro-militares de Kadafi demonstram até o limite do absurdo como o sistema financeiro internacional, cujo coração está nas grandes democracias do ocidente, desempenha um papel chave na proteção dos fundos dos ditadores. Até 2003, a Líbia não participava do mercado mundial das finanças. A partir daquele ano, Kadafi se reconciliou com o Ocidente e a Líbia ficou livre de sanções internacionais. O Ocidente abriu as portas de suas capitais, de seus bancos, de suas empresas e da ONU. Em 2006, o regime de Trípoli copiou o modelo dos famosos fundos soberanos dos países do Golfo e criou o LIA, Libyan Investment Authority.

Esse fundo, cujos escritórios estão em Trípoli e Londres, move entre 65 e 75 bilhões de dólares. O Tesouro norteamericano bloqueou até hoje 32 bilhões. O LIA investiu seus capitais em grandes empresas italianas (bancos, a FIAT, Finmeccanica) e em empresas-fantasma na França, Inglaterra e outros países. De soberano este fundo não tem nada. Em vez de beneficiar o povo líbio, o LIA é controlado inteiramente por um dos filhos de Kadafi, Seif al Islam. O bloqueio das contas pessoais de Kadafi e de dez de seus parentes permitiu que Londres imobilizasse 1,5 bilhões de dólares do ditador e de cinco membros de sua família. Mas essa soma é uma “propina” ao lado da real fortuna escondida no exterior e calculada em 14 bilhões de dólares.

O obstáculo maior reside na identificação destes fundos. Tony Wincks, especialista em lavagem de dinheiro e diretor de Nice Actimize, uma empresa especializada em lutar contra a fraude, destaca que a transcrição dos nomes árabes é um dos grandes truques para evitar ser descoberto. “Na França, Estados Unidos ou Grã Bretanha o nome de Kadafi pode ser escrito como Gaddafi ou Qadafi. Calculamos que com o nome e o apelido completo de Muammar Kadafi podem se fazer 115 mil combinações possíveis”.

A ONG britânica Global Witness formulou duas perguntas pertinentes que envolvem a conduta ocidental frente aos ditadores: “Esses dinossauros assassinos teriam permanecido no poder sem a cumplicidade bancária das grandes democracias? Teria sido necessária uma intervenção militar na Líbia se os bancos ocidentais tivessem se recusado a trabalhar com o dinheiro de Kadafi?”. Sem dúvida, não teria sido igual. “Ao aceitar esse dinheiro, os bancos propiciaram esses regimes brutais e permitiram que eles pagassem seus amigos políticos, fraudassem eleições e aterrorizassem suas populações”, diz a Global Witness.

No que diz respeito à fabulosas fortunas guardadas no estrangeiro pelo egípcio Hosni Mubarak, pelo tunisiano Ben Alí ou pelo próprio Kadafi, Anthea Lawson, responsável pela campanha Cleptocracia em Global Witness, assinala que “os bancos nunca deveriam ter aceito esse dinheiro nem os governos deveriam ter permitido isso”. Mas o dinheiro não tem cheiro. Saia de um prostíbulo, de uma bucha de cocaína, dos circuitos engravatados e sujos do sistema financeiro internacional ou do sangue dos povos oprimidos pelos déspotas do mundo, o dinheiro sempre chega limpo ao mesmo lugar: os bancos.

Tradução: Katarina Peixoto

Compartilhe:

Compartilhar no facebook
Facebook
Compartilhar no twitter
Twitter
Compartilhar no whatsapp
WhatsApp
Compartilhar no telegram
Telegram