Vários escritores registraram a escravidão na literatura brasileira

Detalhes do regime, eternizados com requinte artístico, causam calafrios ainda hoje

O mês da Consciência Negra, ao dar mais visibilidade às campanhas de combate ao racismo, também deixa claro que o racismo no Brasil é uma ferida social aberta nos tempos da escravidão, que nunca cicatrizou. Além dos abolicionistas, que denunciavam as atrocidades daquele sistema produtivo e exigiam o respeito humano a toda a população negra no país, o assunto estampou também as páginas da literatura brasileira, pela pena de autores como Castro Alves, Machado de Assis e Olavo Bilac, entre tantos outros.

Célebre poeta romântico, Castro Alves (1847-71), criou alguns dos versos mais belos da poesia brasileira com o registro das atrocidades contra os afrodescendentes no Brasil. Entre seus muitos trabalhos de destaque, um poema que desponta é a “Canção do africano”, que ressoa o conhecido banzo, a saudade que os escravizados sequestrados na África sentiam de sua terra de origem.

O cenário inicial é triste, para dizer o mínimo: “Lá na úmida senzala/Sentado na estreita sala/Junto ao braseiro, no chão/Entoa o escravo o seu canto/E ao cantar correm-lhe em pranto/Saudades do seu torrão…” Sempre com belos letras, Castro Alves segue em seus versos para afirmar que o quadro parecia incrustado na estrutura do país, com poucas chances de mudanças no curto prazo: “De um lado, uma negra escrava/Os olhos no filho crava/Que tem no colo a embalar…/E à meia voz lá responde/Ao canto, e o filhinho esconde/Talvez pra não o escutar!” E, em meio à crítica social, revela a dor humana, nas palavras com que a mãe, nascida na África, embala sua criança, nascida aqui: “Minha terra é lá bem longe/Das bandas de onde o sol vem/Esta terra é mais bonita/Mas à outra eu quero bem!”

Mais adiante, em 19 de maio de 1888, Machado de Assis esbanjava sarcasmo em crônica publicada na Gazeta de Notícias. O autor negro, nascido e criado no pobre morro do Livramento, considerado pela crítica o mais elevado escritor brasileiro, ironiza a Lei Áurea, assinada dias atrás, com um narrador que faz as vezes de um proprietário, que diz: “toda a história desta Lei de 13 de Maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha”. E continua em seu cinismo: “Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar”.

Machado, com a tinta ácida de sempre, vai adiante para mostrar a desfaçatez da elite, que agia para manter a opressão sobre os escravizados libertados. “No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza: — Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida, e tens mais um ordenado”. Sem alternativa, o jovem é obrigado a aceitar o novo jugo. “Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor.”

A manutenção das condições escravistas após a Lei Áurea é ainda acentuada pela narrativa de Machado, que, apesar de ficcionais, não podiam ser mais realistas: “Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do Diabo; coisas todas que ele recebe humildemente”. Todo o jogo de cena, nem tão disfarçado, segue num intuito de classe, quando o narrador, proprietário e branco, declara sua real intenção com a ação: “meu plano está feito; quero ser deputado”. E usará a mentira como base da campanha: “muito antes de abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente que dele teve notícia”. Como sempre cáustico, Machado mostra nas entrelinhas que não havia ocorrido abolição, nem mesmo após a lei assinada pela princesa, e que tudo não passou de discurso da classe dominante para manter a exploração sobre a população negra.

Anos mais tarde, Olavo Bilac, na mesma Gazeta de Notícias, relembrava os dias da escravidão. Apesar de mais otimista que Machado, o poeta busca pela memória como era desolador o quadro da então capital do Brasil, o Rio de Janeiro. Sua crônica de 12 de maio de 1901 fala das crianças nascidas após a Lei Áurea. Eram mais felizes, em sua visão. Ao mesmo tempo, numa espécie de ato falho, diz que “períodos de paz”, como julgava aquele comecinho do século XX, “dão aos espíritos otimistas (…) a ilusão de que foram contados e extintos os dias de sofrimento humano”.

Para o poeta, os “meninos que aí andam jogando peteca, não viram nunca um escravo…” Porém, “quando eles crescerem saberão que já houve no Brasil uma raça triste voltada à escravidão e ao desespero (…) e darão notícias dos trágicos terrores de uma época maldita”. A descrição que então tece do regime que vigorara formalmente até 13 anos antes, ainda causa calafrios: “filhos arrancados ao seio das mães, virgens violadas em pranto, homens assados lentamente em fornos de cal, mulheres nuas recebendo na sua mísera nudez desvalida o duplo ultraje das chicotadas e dos olhares do feitor bestial”.

Bilac observa que o cenário social havia mudado para os olhos das crianças a que se refere. Diz que os “meninos (…) já não encontram pelas ruas (…) o doloroso espetáculo que nos estatelava de surpresa e assombro: as levas de gado humano consignadas à ferocidade dos eitos; pobres mulheres e pobres homens, que traziam no rosto uma máscara de ferro, como prevenção e castigo da intemperança; míseros anciãos cambaios e trêmulos, tendo a alvura da carapinha em contraste com a escuridão da pele, e já meio mortos de velhice e sofrimento, e ainda mourejando de sol a sol, com o cesto sujo à cabeça para o trabalho do ganho; molecotes nus e esqueléticos que chupavam seios sem leite; toda a vasta procissão, enfim, dos abandonados de Deus…”

No campo, Bilac descreve como a realidade também era cruel, e, mostra que lá se ouvia “do romper do sol ao cair da tarde, uma cantilena melancólica que dava calafrios… Era o queixume dos que retalhavam a terra; era o guaiar da raça miserável que cantava o seu infinito desconsolo. E, no chão que o esforço dos escravos lavrava e fertilizava, corria o sangue dos mártires, pedindo misericórdia, clamando vingança, caindo sem cessar, gota a gota, dos corpos suplicados…”

Sua matéria de jornal, que tenta ser otimista por algum aspecto, fecha com uma questão: “Por esse vasto Brasil, quantas vítimas da escravidão não estarão, ainda, no fundo dos calabouços negros, pagando crimes a que foram unicamente levados pelo rebaixamento moral e pelo irrefletido desespero a que os reduzia o egoísmo dos senhores?”

A pergunta mostra a indignação com o fato de a abolição assinada pela princesa ainda não ter, no fundo, acabado com a escravidão 13 anos depois. Mais indignação, porém, causa o fato de essa pergunta não ter sido respondida ainda hoje, mais de 130 anos depois.

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