Democracia e cenário global definem a luta dos trabalhadores

Discussão inicial da 25ª Conferência Nacional traçou desafios atuais em que movimentos sociais devem se concentrar

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Na abertura dos trabalhos da 25ª Conferência Nacional d@s Trabalhador@s do Ramo Financeiro deste sábado (5), a primeira mesa tratou dos temas “Democracia” e “Conjunturas internacional e nacional”, apresentados, respectivamente, pela professora de Ciências Sociais Tathiana Chicarino e pelo professor de Política Internacional Moisés Marques, diretor acadêmico da Faculdade 28 de Agosto.

Democracia

A professora Tathiana Chicarino concentrou sua participação em uma ampla discussão sobre o conceito de democracia, pela perspectiva histórica. Como ela expôs, o sistema democrático é “elemento permanente sobre como se vive em sociedade, histórica e geograficamente localizado no mundo urbano e industrializado, em que o trabalhador tem papel fundamental”.

Sua base é a organização política, com a distribuição do poder pela representação a partir da cultura política, orientada pela organização do poder. O modelo mais adotado segue os parâmetros de “democracia representativa” teorizado por Bernard Manin, que é baseado em partidos e na escolha da liderança do exercício do poder por meio de sufrágios populares (eleições), que supostamente devem refletir as segmentações de classe. Porém, “ainda que tenhamos uma democracia formal desde a Constituição de 1989, será que no Brasil a possuímos na prática?”, questionou ela.

No Brasil

A consolidação da democracia representativa se deu de modo mais acentuado a partir de meados do século 20, como pontuou Tathiana Chicarino, “com a personalização da escolha eleitoral e a ampliação dos canais de comunicação, em especial a TV, que alterou a mediação partidária”, que se fortaleceu como palco político. Para ela, “a eleição de 1989, com segundo turno entre Collor e Lula, foi a primeira marcada por esse processo no Brasil”.

Como apontou a professora, “a democracia no país enfrentou e enfrenta dificuldades para seu enraizamento”, marcadas por momentos históricos cruciais, “como o fato de o país ter sido o último a abolir a escravidão em 1888, de a República ter sido instaurada por um golpe militar um ano depois e de o sufrágio universal ter sido alcançado apenas em 1988”. A intermitência entre ditaduras e momentos democráticos (de 1946 a 1964 e de 1985 a 2013), segundo Tathiana, fez com que “a construção de nossa cidadania ficasse incompleta, com o surgimento de um otimismo acrítico e de uma degradação institucional”.

Após a primeira quadra democrática (de 1946 a 1964), ela lembrou que, na ditadura militar (1964 a 1985), a abertura proposta feita a partir de 1974, no governo do general Ernesto Geisel, “lenta gradual e segura, buscou estender o status quo e manter a repressão. Mas o movimento popular pela democracia era muito forte, com a participação dos sindicatos, e culminou com a abertura real. Porém, a partir de 2013, houve o movimento contrário, que degradou todas as conquistas, até chegar à eleição de Bolsonaro, em 2018”.

Extrema-direita

Na opinião de Tathiana, “se pensarmos historicamente, desde o Partido Integralista [nos anos 1930], vemos que que a extrema-direita sempre esteve presente, mas não exatamente de maneira plenamente estruturada”. Nos anos mais recentes, ela apontou “o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, com clara violação da soberania popular, a Lava-Jato e a criminalização do ser e fazer político”, como exemplos recentes de manifestação dessa corrente política.

Internet, Trump e Bolsonaro

Para a palestrante, a chegada da internet mudou muito a forma de ver e entender a política. “Hoje, não podemos mais polarizar entre offline e online. Com a internet, tivemos a sensação de popularização para as pessoas se manifestarem, mas temos que ter a consciência de que nem todos são ouvidos”, alertou.

Com o fenômeno mais recente do uso eleitoral da internet, observou-se que aqueles que se definem como outsiders passaram a atuar em vulnerabilidades específicas, como o que se viu com a eleição de Donald Trump, em 2016 nos Estados Unidos, com uso ilegal de dados pessoais e dark posts em redes, como o Facebook, com o intuito de persuadir indecisos.

Na réplica brasileira, dois anos depois, a eleição de Bolsonaro se baseou na hiperconectividade orientada pela desinformação e pela retórica do ódio, com amplo uso do aplicativo WhatsApp, como observou Tathiana. “Foi um ataque central à democracia, com forte investimento na desinformação”, pontuou. Esse processo privilegiou, segundo ela, “a criação de minorias e não de maiorias, que resultou em processos de radicalização, de normalização do que Bolsonaro dizia, de familiarização com esses termos e conceitos e, por fim, da desumanização, que significa a eliminação do outro”.

Desafios

Como afirmou a professora, “democracia radical não é rompimento com a democracia liberal, mas a radicalização dos princípios ético-políticos de igualdade, liberdade e soberania popular”. Ela também afirmou que “tecnologia não pode ser entendida como algo separado da sociedade e da cultura, mas que elas, ao contrário, são inseparáveis e estão em constante interação”.

Tathiana também observou que “a tecnologia não é necessariamente salvação nem perdição da humanidade, e que igualmente não é neutra, já que pode abrir ou fechar possibilidades, ainda que de forma ambivalente e ambígua, já que algumas de suas características podem direcionar nossos comportamentos e, exatamente por isso, precisamos nos apropriar dela, claro que democraticamente”.

Que mundo é este?

O professor Moisés Marques abriu sua participação com uma frase do filósofo e ativista político espanhol José Ortega y Gasset, em seu livro O homem e a crise: “Nós não sabemos o que está acontecendo conosco, e é exatamente isso que está acontecendo conosco”. Para Marques, a expressão se encaixa para a análise do atual cenário político internacional, no momento em que se busca entender a interferência da guerra entre Rússia e Ucrânia no abastecimento internacional de grãos, que pode iniciar uma crise alimentar global.

Foi essa possibilidade que gerou o plano do chamado “Corredor de Grãos”, para transporte de trigo, cevada e milho, da Ucrânia até a Turquia, sob a coordenação das Nações Unidas. Os dois países em guerra respondem por 25% do comércio internacional de trigo. “Ali, há disputas do comércio milionário desses produtos, mas a gente não sabe o que acontece na guerra civil na Síria, por exemplo, que já tem 12 anos e se fala que já proporcionou até 800 mil mortos”.

No entanto, conforme o professor, diversas outras razões geopolíticas são decisivas na ordem, ou desordem, internacional, que afeta diretamente a situação brasileira. Os países em desenvolvimento, como o Brasil, em geral “evitam ser pisoteados num contexto de Guerra Fria 2.0”, como definiu Marques em sua apresentação.

No atual cenário global, os “países não desenvolvidos” têm de lutar para, como ele elencou, “alcançar certa capacidade de adaptação rápida a circunstâncias imprevisíveis; lidar com a relevância que ganharam temas como comércio internacional, mudanças climáticas e novas tecnologias; e enfrentar o rescaldo da pandemia; além das dificuldades para estabelecer uma ordem internacional mais igualitária”.

Consequências internas

No longo prazo, esse contexto, associado às consequências do período turbulento do governo de Jair Bolsonaro (PL), tem gerado no Brasil números bastante desfavoráveis para a economia e o desenvolvimento social, no Produto Interno Bruto (PIB), no desemprego, na inflação e nos juros.

A instabilidade e a imprevisibilidade na economia resultam em baixos investimentos na infraestrutura e elevados custos para o crédito, por exemplo. “O Brasil vem num embalo de apenas atacar a inflação, mas, com a recente redução de juros, Campos Neto não fez nenhuma benesse, ele manteve juros reais acima do patamar do fim do ano passado”, afirmou Marques. E o pior, enfatizou, “os juros que o sistema financeiro cobra são mais escorchantes para quem ganha menos, como vemos com os empréstimos consignados, que, para quem ganha de um a dois salários, passa dos 99%”.

Governo Lula

Marques lembrou que, no novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, uma extensa lista de ações está sendo articulada em busca do equilíbrio da situação no país. Ele citou, entre elas, o início da reforma tributária, a retirada de empresas do processo de desestatização, a ampliação da participação popular, as renegociações de dívidas, o crescimento do crédito rural, a elevação do salário-mínimo e da faixa de isenção do IR, a recriação do ‘Minha casa, minha vida’, a atenção a questões ambientais, o incentivo à indústria, as ações de promoção social (farmácia popular, Mais Médicos), a redução de acesso a armas, os novos parâmetros de fomento à atividade cultural e o programa de priorização de vagas para mulheres e pessoas de comunidades discriminadas socialmente.

No campo das relações internacionais, Marques observou que nos primeiros seis meses do mandato, Lula passou mais de 31 dias no exterior, porque o Brasil precisa se concentrar no “resgate da credibilidade”. Nesse trabalho de “construção e reconstrução de pontes”, ele destacou a visita a países latino-americanos e europeus, aos EUA, à China e ao Japão, além do Vaticano; a participação em reuniões de cúpula multilaterais; o início de conversas de intermediação do conflito Rússia-Ucrânia; e o foco na temática ambiental.

Na política

A conhecida definição do funcionamento político no Brasil pelo “presidencialismo de coalizão”, conforme Marques, encontra-se hoje em reformulação, com a fragmentação partidária e pulverização descoordenada dos processos decisórios. “O que temos hoje são donos do Congresso”, disse. Nesse cenário, não há como o governo montar uma coalizão com poucos partidos, o que aumenta as dificuldades de o poder Executivo implementar a sua agenda.

O professor afirma que “o ‘orçamento secreto’, além de promover o crescimento das emendas orçamentárias de R$ 7 bilhões para 35 bilhões de 2016 a 2023, tornou cada parlamentar uma ‘entidade autônoma’ na política”. Ao mesmo tempo, houve aumento do poder dos presidentes das casas legislativas, principalmente na Câmara dos Deputados, e maior rejeição dos projetos de iniciativa do Executivo. Com isso, observa, “as coalizões se tornaram muito mais fisiológicas, com o ‘Centrão’ se tornando uma espécie de ‘proprietário do governo’, desde o governo Temer”.

O que fazer?

Nesse quadro, disse Marques, “a única forma de se conseguir apoio para causas relevantes parece ser utilizar a chamada ‘pauta do país’, por isso, é necessário rediscutir a urgência de uma reforma política”.

O enfreamento dessa conjuntura, para o professor, passa também por iniciativas como a redução dos juros; a participação do mercado financeiro e de capitais no financiamento da infraestrutura; a formação de uma nova geração capaz de absorver essas mudanças; e o fortalecimento da luta pela existência de bancos públicos e de desenvolvimento, com uma abordagem social; entre outras. “É preciso resistir com sabedoria nesse mundo em transição”, completou.

Para concluir, Marques citou uma frase de Marielle Franco: “As rosas da resistência nascem no asfalto. A gente recebe rosas, mas vamos estar com o punho cerrado falando de nossa existência contra os mandos e desmandos que afetam nossas vidas”.

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