Entrevista: “A Contraf não é uma grife”

Miguel Pereira, diretor da Contraf, tem sido figura de proa no desenvolvimento da discussão sobre construção de uma organização sindical do ramo financeiro em todo o país. A tendência mundial de organizar os trabalhadores de maneira mais ampla tem pouco eco no Brasil, onde a divisão por categoria profissional remonta à criação das leis trabalhistas, que atrelou a organização dos trabalhadores aos moldes definidos pelo Estado.

A Contraf é a materialização desta tendência no movimento sindical bancário brasileiro. A Confederação tem apenas dois anos e substituiu a antiga Confederação Nacional dos Bancários, que seguia o modelo antigo de organização dos trabalhadores. Miguel Pereira viaja pelo Brasil, visitando sindicatos e afirmando: “A Contraf não é uma grife”. O UNIDADE conversou com Miguel sobre este movimento de mudança para esclarecer toda a amplitude do novo conceito.

UNIDADE Informativo – Por que o movimento sindical bancário entendeu que deveria fundar a Contraf?.
Miguel Pereira – Nós tínhamos a CNB – Confederação Nacional dos Bancários e, num debate político e de contextualização, bastante contemporâneo, entendemos que era importante fundar a Contraf, para abranger todos os trabalhadores do ramo financeiro. O movimento sindical bancário talvez não tenha ainda percebido esta simbologia em toda a sua extensão. Percebeu em parte, porque aprovou a criação da nova entidade – foi ao congresso, aprovou a construção da Contraf, a reformulação e os sindicatos se filiaram.
O que acontece é que a construção da Contraf coloca em cheque toda a estrutura sindical. Isto já aconteceu antes, com a construção da CUT enquanto central, que colocou em cheque não só os princípios, mas toda uma estrutura sindical vigente que era estatal, corporativa, imediatista. A CUT rompe com isso e diz que os trabalhadores são protagonistas da própria história. O papel que as entidades sindicais têm, ou devem ter, é muito maior, amplia a relação capital-trabalho. As entidades têm uma série de necessidades e são um ator social e, como tal, têm que estar representadas nos espaços. A visão legalista e corporativa da CLT não dava esta dimensão, esta amplitude social, ao papel do sindicato. Em 1983, quando acontece o CONCLAT (I Congresso Nacional da Classe Trabalhadora), os trabalhadores, à época, fizeram esta reflexão e criaram a Central. A organização dos trabalhadores enquanto ramos de atividade, perseguindo o conceito de cadeia produtiva, é um dos propósitos da CUT. Quando a Contraf se propõe a fazer a alteração de Bancários para Ramo Financeiro, é por entender que, se existe uma cadeia produtiva, os trabalhadores desta cadeia tem que se organizar em torno desta atividade.

UI – A que necessidades a construção da Contraf vem atender?
MP – A legislação brasileira, apesar do reconhecimento recente das centrais sindicais, ainda define a organização dos trabalhadores por categoria profissional. Então, quando a Contraf dá este salto de qualidade política, dizendo “agora nós vamos nos organizar enquanto ramo”, de novo são os trabalhadores assumindo o protagonismo da história e colocando que o conceito de categoria não dá mais conta para organizar bancários. Porque, dado o volume de terceirizações, a reformulação do setor provocada pela reestruturação produtiva, a reorganização do capital financeiro, tudo mudou. Nós tínhamos um banco, que era uma empresa. Hoje nós temos este banco dentro de uma holding que controla todo um setor. Tem holdings com trinta, quarenta empresas. O papel do sindicato é organizar, representar e fazer a contratação coletiva. Com esta diversificação do setor, a transformação em holding financeira, o bancário, hoje, é um vendedor de produtos e serviços deste grupo. Então, não tem como o sindicato, que é um prestador de serviços para esta categoria – em todos os sentidos – dar conta de seu papel, porque há um enorme conjunto de atividades e pessoas que se relacionam.

No início da década de 90, éramos um milhão de bancários. Hoje nós somos, com toda a lucratividade do sistema financeiro, 440 mil bancários. Mas, segundo dados oficiais, há cerca de um milhão de trabalhadores no ramo financeiro. A gente estima que haja mais, porque estas informações oficiais não batem com a realidade. Devemos ter em torno de um milhão e meio, ou mais, de trabalhadores prestando serviços a bancos, aí incluídos correspondentes, terceirizados, todos. Isto é mais do que no início da década de 90, quando havia um milhão de trabalhadores bancários formalmente constituídos enquanto categoria, enquanto o banco prestava todos os serviços e tudo estava organizado dentro da mesma empresa. A holding tirou estes serviços e desenvolveu outras atividades fora, em outras empresas, também do grupo. Mas tudo isso sempre se utilizando do banco como o carro-chefe para intermediar esta relação – seja para captar o recurso, seja para aplicar o recurso. E veio também a telemática, o desenvolvimento de toda a parte de transmissão de dados, que possibilitou toda a automação dos processos.

Nos anos 90 não havia cenário econômico propício à expansão do crédito. Hoje, com a inflação controlada, já existe esta condição. Até por isso os lucros dos bancos hoje são fantásticos, porque eles ganham em todas as frentes – no volume de operações de crédito, nas operações de tesouraria, comprando títulos públicos, na prestação de serviços, cobrando tarifas altíssimas dos clientes, e ainda vendendo produtos e serviços. Assim que termina a questão da inflação, na década de 90, os bancos se adaptam rapidamente a uma nova realidade e começam a vender produtos e serviços.

Mas os bancos, se a gente parar para pensar, não mudaram a sua essência, eles continuam praticando a intermediação financeira. Só que hoje, não mais na forma do volume do depósito à vista, da época da inflação, que todo mundo tinha que colocar recursos no banco. Eles desenvolveram uma série de produtos e serviços que colocam nas agências para serem vendidos para captar recursos da população para que possam, dentro da holding, direcionar para onde dá mais retorno, seja para financiamento do consumo, seja para títulos públicos, seja para a área de financeiras. A cada momento, os bancos diversificam a forma de direcionar seus recursos, mas é a mesma essência.

O que mudou com o princípio da liberdade e autonomia sindical da Constituição de 88 foi muito bem aplicado pelos bancos, porque desdobraram suas atividades em diversas outras empresas e definiram o enquadramento sindical destes trabalhadores. A proposta de criação da Contraf é o insurgimento contra a estrutura oficial que tenta colocar uma camisa de força na organização autônoma, legítima dos trabalhadores, dizendo “vocês são isso, se organizam desta forma e só representam isso”. Os bancos pensam “vamos diversificar a forma de atuação”, mas, se a gente for perceber, o que os bancos fazem é o que sempre fizeram, tudo da mesma forma: o que banco faz, onde ele ganha dinheiro, é com intermediação financeira. A Contraf surgiu dizendo “não, nós somos muito mais, temos que ter um papel muito maior e organizar de novo todos os trabalhadores que praticam intermediação financeira”.

Por isso eu digo que a Contraf não é uma grife. Se os bancos, em tese, são os mesmos, nossa lógica é: onde há intermediação financeira, quem a pratica, quem trabalha para esta empresa, faz parte da mesma cadeia produtiva. Então, esta história de que a terceirização vingou, ou tem que vingar, ou que as empresas são diferentes, que não são bancários, mas comerciários, isso tudo é balela, fajutice.

A Contraf faz esta leitura e propõe organizar todos os trabalhadores envolvidos nesta cadeia produtiva, neste processo de intermediação financeira, e busca a representação destes trabalhadores.

UI – Houve uma mudança no perfil do trabalhador bancário, suas atividades e habilidades exigidas. Que desafios isto representa para o movimento sindical?
MP – O bancário de hoje também tem um novo perfil, porque, em algum nível, realiza negócios. Mas nem mesmo os gerentes têm alçada de competência, os sistemas já definem todo o orçamento, baixam este orçamento para as unidades e o próprio sistema valida cada processo. Este chefe do passado perdeu importância hierárquica, aquele papel do controle e validação dos processos, porque hoje algum programa acaba controlando as próprias pessoas, controlando toda a produção ou individualmente as pessoas. Ele só controla, não chefia mais nada, porque esta agência bancária de hoje virou uma unidade de negócios, uma loja para venda de produtos financeiros.

Houve também uma mudança na definição de gerentes. Hoje há um segmento dentro das agências que é uma gerência média. Na verdade, isso é tudo uma fraude e temos que combatê-la. A jornada do bancário é de seis horas. Admitia-se uma exceção, o comissionamento e a jornada de oito horas em cargos de confiança, desde que este cargo fosse revestido de poder de mando, administração, gerenciamento, etc, Mas qual é o poder de mando, administração e gerenciamento destes novos cargos? Isto é uma burla. Os bancos promovem as pessoas a uma jornada maior, de oito horas – e isso já é um prejuízo financeiro, porque o bancário passa a trabalhar mais – mas não há gerenciamento de pessoas, de processos, de nada. O que há é um título de gerente, para burlar a jornada de seis horas.

Com este título, o banco estabelece uma relação de subverniência muito maior, porque o empregado passa a ser um gerente do processo da empresa, um preposto. Antes havia um só gerente na agência, o gerente-geral. Hoje há 15 prepostos que são todos gerentes médios. Estas pessoas acabam se afastando de uma pauta sindical porque dialogam muito mais com a empresa. O banco estabelece metas, cobra resultados e apresenta um pagamento, ou uma “premiação”, pelo batimento desta meta. Isto é ótimo para o banco, que atinge os resultados desejados e tira este público importante da relação sindical. Os impactos da organização do ramo não são só para quem está fora da definição atual de categoria bancária, são também para quem continua dentro. Esta é uma reflexão importante que a própria construção da Contraf acaba trazendo para o movimento sindical bancário.

UI – Além da análise da nova realidade do sistema financeiro, que parâmetros oficiais a Contraf usa para definir a organização dos trabalhadores por cadeia produtiva?
MP – A gente buscou se espelhar na regulamentação do Sistema Financeiro Nacional. O Conselho Monetário Nacional define quem são os agentes financeiros e quais os setores que praticam intermediação financeira – aí entram os bancos, as financeiras, as cooperativas de crédito, toda a área de seguros, de previdência complementar, produtos de capitalização. Tudo isso são formas de captar recursos.

UI – Qual o papel das federações e sindicatos?
MP – Houve uma reflexão no movimento sindical bancário e a Contraf se constituiu enquanto confederação. O papel dela é de articuladora, coordenadora, orientadora, de negociadora nos espaços institucionais. Mas as outras instancias têm papel importante para a consolidação deste modelo, como foi vitorioso, lá atrás, com o sonho de construção e, hoje, com o reconhecimento da CUT. As federações têm o papel de articular as ações no âmbito dos seus filiados e os sindicatos têm o papel primordial. Se na Contraf temos todos os instrumentos políticos, administrativos, jurídicos para fazer todo este debate, esta nova configuração sindical, são os sindicatos que se relacionam com a base, que fazem este filtro, este contato, mapeiam necessidades, que organizam, de fato, os trabalhadores. A Confederação e as federações não organizam o trabalhador, quem organiza é o sindicato. Então, a importância da compreensão desta reflexão e do rebatimento na estrutura é que a gente pode fazer tudo por cima, administrativamente, na caneta, alterando as leis. Mas o mais fundamental é que os trabalhadores estejam, efetivamente, envolvidos com esta construção desta nova estrutura, que se sintam representados e ambientados neste cenário. Isto vai permitir que o enfrentamento capital-trabalho – dos trabalhadores não mais só bancários, mas de todas as empresas dos grupos do ramo financeiro contra os bancos – seja, de novo, equânime. Com a mudança da configuração das empresas, ficou uma disputa desigual, temos bancários brigando contra uma holding financeira, não contra um banco. E os demais trabalhadores da holding onde estão? Não estão brigando, não estão organizados ou, quando estão, é em outro sindicato, mal representados, porque não têm a mesma perspectiva, nem a mesma compreensão do processo. Cabe aos sindicatos fazer toda esta aproximação, todo este convencimento, porque a leitura política está correta. A Contraf não pode ser vista só como uma entidade nova, que surgiu no processo de pulverização de entidades sindicais. Há uma concepção classista muito forte por trás desta estruturação, que precisa ser compreendida por todas as outras instâncias da escala: as federações em segundo grau, e os sindicatos, em primeiro.

No nosso entender, o processo de enfrentamento deve ser construído desta forma, neste modelo sindical: que a confederação seja do ramo, que represente todo o sistema financeiro, que as federações e sindicatos sejam do ramo. Mais do que ter a marca – por isso dizemos que não é uma grife – isto requer muito trabalho e tem uma concepção classista muito forte. Estamos reagrupando todos os trabalhadores envolvidos nesta cadeia produtiva, de todo o sistema financeiro. É importante que os sindicatos compreendam isso e que vão atrás deste trabalhador e apresentem esta possibilidade. O que está colocado pela lei ou pelo patrão é um modelo que interessa ao capital, não aos trabalhadores. O que estamos fazendo é construir um modelo que interessa aos trabalhadores, que envolve todos os envolvidos no processo de intermediação financeira: seguradoras, empresas de capitalização, as financeiras, inclusive as que são as promotoras de vendas. As financeiras, que são chamadas também de promotoras de vendas, representam 30 a 40% da holding financeira, mas seus empregados trabalham 14 horas por dia, sábados e domingos, com um piso de R$ 450, R$ 480. Não são trabalhadores do comércio, mas de grupos como Bradesco e Itaú. Isto é uma tremenda expropriação, mesmo que se aplicasse o conceito de mais-valia, é muito mais, pelo que é gerado.

UI – Qual o papel dos atuais sindicatos de bancários na contrução de uma organização sindical por ramos de atividade?
MP – Quando o processo de intermediação financeira se dava todo dentro do banco, quando parava as agências, parava a máquina. E aí, na correlação de forças, o trabalhador tem poder. Hoje, com a reestruturação produtiva, com a atuação na forma de holding, o uso da telemática e da terceirização, o bancário pára, mas não se pára o banco. A lógica da greve é gerar prejuízo para o patrão, a própria Constituição assegura e garante esta situação. Hoje, esta questão está muito fragilizada, porque o trabalhador pára, mas o setor não, porque tem o auto-atendimento, os canais alternativos, o home banking, a terceirização, os correspondentes bancários. O processo de trabalho teve uma deslocalização muito grande. O espaço físico da agência é uma referencia de negócio, mas se o cliente não vem até mim, eu posso ir atrás do cliente, por telefone, pela Internet. Eu continuo fazendo negócios, porque eu sou um vendedor de produtos e serviços e vou atrás dele. É muito comum nas greves este novo setor, de relacionamento e negócios, a gerência média, não aderir ao movimento.

Fomos a única categoria que percebeu, há vinte anos atrás, que as empresas em que trabalhamos são nacionais e que não se justificava termos acordos por estado, por região ou por empresa. O bancário sempre foi organizado, de luta e combativo, e, por isso, conquistamos a convenção coletiva nacional dos bancários, que garante as mesmas condições de salário de norte a sul do Brasil. Outras categorias têm convenções coletivas nacionais, mas são todos trabalhadores de uma empresa só. Esta conquista foi fruto de uma luta de décadas e décadas de trabalhadores bancários, uma construção que foi bem-sucedida. Tanto que, no ano passado, o BB e a CEF assinaram a mesma convenção.

Os bancários têm um dos movimentos sindicais mais fortes e bem estruturados da história do Brasil. Primeiro por conta deste protagonismo, a categoria sempre esteve muito atenta a todo seu processo de organização. E sempre teve muito êxito com esta visão classista, que sempre teve muito clara a relação capital-trabalho, a necessidade de disputar o seu quinhão. Nada foi dado – nenhuma legislação social ou trabalhista no Brasil foi fruto da benevolência do governante do momento, mas sempre foi fruto da luta social. O bancário sempre teve isso muito firme, presente, e, como é um setor de ponta, muito importante na economia, as suas greves e lutas sempre resultaram em conquistas. Se remontarmos à definição do papel do sindicato, que é organizar a categoria, lutar com ela e conquistar avanços salariais e benefícios, construir dias melhores, estamos falando de correlação de forças.

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