CPI incluirá trabalho escravo rural e urbano nas investigações

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que investiga as ocorrências de trabalho escravo, realizou, na quarta-feira (18), a primeira audiência pública na Câmara dos Deputados, em Brasília, que contou com a participação do ex-ministro do Trabalho e ex-deputado Walter Barelli, do sociólogo José de Souza Martins e de representantes do governo federal.

Registros

O Ministério do Trabalho informou ter resgatado 2.271 trabalhadores explorados em condições análogas à de escravidão em 320 estabelecimentos, ao longo do ano passado. A maior parte dos casos é registrada em atividades agropecuárias, em carvoarias e em práticas de desmatamento.

Na opinião do ex-ministro do Trabalho e professor do Instituto de Economia da Unicamp Walter Barelli, uma das características do trabalho escravo é a sua invisibilidade. Ele explica que essa prática ocorre principalmente nas fronteiras agrícolas, em pontos inacessíveis ou em porões de centros urbanos. Segundo Barelli, as vítimas nesse último caso seriam sobretudo migrantes.

Autor de vários livros sobre o tema, o sociólogo da Universidade de São Paulo (USP) José Martins afirmou que, depois de índios e negros, a vítima atual da escravidão são trabalhadores submetidos a um modelo fundiário concentracionista, que ainda usa mecanismos primitivos de acumulação de capital, apesar de o Brasil ser a sexta maior economia do mundo.

Histórico de denúncias

Martins fez um histórico dos casos mais graves desde as primeiras denúncias, na década de 70. “Em 1986, em uma fazenda de Rondônia, trabalhadores eram surrados com vergalhos de boi, pedras amarradas nos testículos, amarrados a troncos de árvores, mãos sangrando mergulhadas em rios com piranhas”, citou.

“Em 1987, um jovem trabalhador foi queimado vivo em um canavial do Mato Grosso do Sul. Em 1989, em Rondônia, um casal de trabalhadores foi amarrado à cauda de um cavalo, arrastado na disparada e morto. Em 1990, em um fazenda do Pará, a polícia encontrou, no cocho do chiqueiro de uma fazenda com escravo, o corpo carbonizado de um trabalhador servido como ração aos porcos”, contou Martins.

Barelli lembrou que em 1993, quando ocupou o Ministério do Trabalho, foi realizado um mapa das ocorrências de trabalho escravo no Brasil. Na época, 32% dos registros de trabalho escravo foram encontrados no Sudeste, 27% na região Norte, 18% no Centro-Oeste, 13% no Nordeste e 12% no Sul. Entre os setores, os casos se concentravam especialmente nas áreas sucroalcooleira, agrícola, carvoeira e de reflorestamento.

PEC do Trabalho Escravo

Para enfrentar essa situação, o coordenador-geral da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), José Armando Fraga Diniz Guerra, pediu a imediata aprovação da PEC (438/01) que trata da expropriação de terras onde tais crimes são constatados. A matéria aguarda a votação em segundo turno na Câmara dos Deputados.

Guerra disse que o governo tem focado suas ações em prevenção, reinserção dos trabalhadores e repressão econômica aos empregadores. No entanto, deputados ruralistas reclamaram de preconceito contra os produtores rurais durante a fiscalização.

A secretária nacional de Inspeção do Ministério do Trabalho, Vera Lúcia Albuquerque, também reforçou o apelo dos convidados pela aprovação da PEC do Trabalho Escravo. Ela lembrou que a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) têm pressionado o Brasil a adotar normas claras de punição para os empregadores que se aproveitam desse tipo de mão de obra.

Atual responsável pela fiscalização dos casos que integram a “lista suja”, a secretária Vera Albuquerque lembrou que o trabalho é conjunto entre fiscais, procuradores e juízes do trabalho.

Para Vera, não há dúvida quanto aos critérios de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições degradantes que definem o trabalho escravo. Mesmo assim, ninguém foi preso por isso até hoje.

“A legislação no Brasil é tão cuidadosa em dar oportunidades de defesa que a única pessoa punida pelo crime de trabalho escravo até hoje recebeu a pena de fornecer cestas básicas. Não adianta definir trabalho degradante: tem que se ver. E quando se vê, não se tem dúvida de que aquele trabalho é degradante. A jornada exaustiva é a que exaure o trabalhador. Já aconteceu morte de trabalhador no corte da cana, em São Paulo, porque eles trabalham por produção e o trabalhador se exaure para dar comida para a família dele”.

Avaliações

O presidente da CPI, deputado Cláudio Puty (PT-PA), avaliou positivamente o debate e as contribuições dos convidados e dos integrantes da comissão, mas ressaltou que não pode haver dúvidas quanto ao papel do órgão.

“Ficou muito claro que há duas interpretações sobre qual deve ser o rumo da CPI. Há uma interpretação que deseja converter a CPI numa ‘CPI da fiscalização do trabalho’, mas o sentido desta CPI é buscar uma forma para erradicar o trabalho escravo. Independentemente disso, tivemos hoje um debate muito positivo, com convidados de altíssimo nível, e esta primeira audiência pública cumpriu com o seu objetivo”, afirmou Puty.

Um dos integrantes da CPI, o deputado Vicentinho (PT-SP), defendeu o caráter propositivo do órgão e criticou eventuais tentativas de inviabilizar o seu trabalho. “Eu espero que a sociedade receba esta CPI como a contribuição definitiva do Congresso Nacional para que superemos de uma vez por todas a existência da escravidão contemporânea”, afirmou.

“E espero também que não haja ações que atrapalhem o trabalho desta CPI, na lógica de que o trabalho escravo não existe, pois ele existe tanto no meio rural como nas cidades. Tenho certeza que nenhum deputado concorda com a continuidade dessa ferida aberta”, disse Vicentinho.

“Vários produtores com quem tenho conversado no meu estado, principalmente no oeste da Bahia, têm uma atitude positiva em relação à CPI e querem que o trabalho escravo seja definitivamente erradicado do Brasil”, acrescentou o deputado Amauri Teixeira (PT-BA).

Os parlamentares petistas e os representantes do governo federal na audiência defenderam a aprovação da proposta de emenda à Constituição (PEC 438/01) que endurece as penas para as ocorrências de trabalho escravo e serviria como medida de prevenção a esta prática. A proposta aguarda votação em segundo turno e deve ser apreciada pelo plenário da Câmara na primeira semana de maio.

A CPI deve realizar novas audiências públicas e diligências a locais com histórico de ocorrências de trabalho escravo, mas as atividades ainda não têm data definida para serem realizadas.

O relator da CPI, deputado Walter Feldman (PSDB-SP), afirmou que o grupo investigará a fundo também os casos de trabalho escravo no meio urbano. A declaração foi dada ao final da primeira audiência pública realizada pela comissão. Feldman declarou também que a CPI procurará estabelecer um pacto entre poder público, centrais sindicais e setor empresarial contra o trabalho escravo.

Outras audiências

A CPI aprovou 14 requerimentos, entre eles, o que convida os ex-ministros da Secretaria de Diretos Humanos, Paulo Sérgio de Moraes Sarmento Pinheiro, Nilmário Miranda, Mário Mamede Filho e Paulo Vannuchi para prestar depoimentos à comissão.

Também foi aprovado pedido de informações sobre operações de fiscalização do Ministério do Trabalho entre 2004 e 2011.

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