ARTIGO: CPMF e as saudades perversas

Por Gilson Caroni Filho*

Que ninguém se iluda quanto ao que estará em jogo no Senado na semana que começa. Os adversários da emenda que prorroga até 2011 a cobrança da CPMF têm um objetivo nítido: inviabilizar o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado no início do ano pelo governo, com medidas de estímulo ao crédito e ao financiamento.

Acenando com redução da arrecadação de impostos, o governo Lula procurou melhorar o ambiente para investimentos. Tínhamos, então, um pacote de crescimento que, entre investimentos públicos e privados previstos no Programa, disporia de R$ 503,9 bilhões,até 2010, para investir no país, visando ao crescimento de pelo menos 5% ao ano do Produto Interno Bruto (PIB). Convenhamos que para os adeptos do Estado submetido aos ditames do mercado, um projeto efetivo de país soa como heresia. Algo a ser sabotado sem a menor cerimônia. O que espanta, e entristece, é ver a extrema-esquerda perfilada ao lado das velhas oligarquias.

O que pode haver em comum entre a fala do demo-tucanato e o discurso dos psolistas quando o assunto é a condenação peremptória da CPMF? Qual o ponto de interseção entre os setores mais conservadores e uma agremiação que surgiu para retomar e, se possível, avançar as reivindicações históricas supostamente abandonadas pelos petistas no exercício do governo? Ainda que, movidos por estratégias distintas e aparentemente em campos opostos, o que une forças tão díspares é uma palavra muito celebrada na língua portuguesa: saudade.

Definida no Novo Dicionário Aurélio como “lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo suave, de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de tornar a vê-las ou possuí-las”, a tal palavrinha costuma produzir versos enlevados e músicas inesquecíveis. Quando transposto para o campo político, onde a licença poética é um corpo estranho, o saudosismo pode ensejar táticas desastrosas e projetos inexeqüíveis.

Será que parcela da esquerda congelou sua capacidade analítica no capitalismo fordista e não consegue reconhecer que o mundo mudou e as condições são outras? Será que ainda há lugar para velhas bravatas de facções estudantis? Quem sabe, dentro de uma lógica tão delirante quanto oportunista, não haja uma “estratégia infalível”? Ao promovermos rupturas abruptas, os centros hegemônicos adotariam um novo Plano Marshall para mudar o cenário econômico mundial.

O problema é que o plano de reconstrução da Europa e do Japão só ocorreu, além da necessidade de contenção da União Soviética, por conta da necessidade do capitalismo estadunidense de recompor uma base mundial de consumo. As inversões de aproximadamente US$ 150 bilhões entre 1948 e 1952 só foram possíveis graças às assimetrias regionais existentes. Eram aportes solicitados pelas grandes corporações de um país incontestavelmente hegemônico, dono de capacidade produtiva sem precedentes. Em suma: os anos dourados de um sistema eficiente. Bem distante da economia vulnerável de hoje. Incapaz, em vários segmentos, de fazer frente aos concorrentes europeus e asiáticos. Dependente da poupança externa para financiar seus déficits.

Já o conservadorismo sonha com o retorno dos “anos dourados” do tucanato. Era fantástico, com o apoio da grande imprensa, apregoar que o capital financeiro se reconverteria em investimento produtivo redentor, a partir da adoção do velho receituário. Propunha alinhamento com os países ricos ao mesmo tempo em que, internamente, submetia o país a um fiscalismo que tinha por objetivo fazer caixa para pagamentos de juros da dívida externa. Como era fácil conciliar vontade política de perpetuação de desigualdades com a garantia dada ao credor do cumprimento de contratos.

Por outro lado, o discurso do PSOL, que se apresenta como o que restou de ético na esquerda brasileira, é outro exemplo de persistência em sonhos do passado. Refuta o que chama de conciliação de classes e pugna por um internacionalismo vago. Parece ignorar as modificações estruturais ocorridas no mundo do trabalho. Opera nos marcos de uma cultura classista típica da fase industrial do capitalismo.

Uma visão que ignore modificações substantivas na esfera da produção tem capacidade de propor alternativas contra-hegemônicas? Pensar o trabalhador como negação permanente do capital não seria dar as costas à história? Como exercício empírico, não seria interessante notar a lógica e composição dos fundos de pensão? A mundialização neoliberal mostrou o quanto o “sujeito universal” tinha de idealização romântica. Ou se percebe isso ou ficamos com as diatribes contra o governo, sempre rentáveis quando o objetivo é o marketing político. Nada que vá além disso.

Enquanto não se rompe o círculo vicioso das interpretações forjadas na fase romântica do industrialismo, os argumentos brandidos pela esquerda de salão soam como nostalgia de uma fase acumulativa que terminou.

Enfim, fazer política requer bem mais engenho que nos tempos de Roosevelt e Trotsky. Encarar a realidade é um grande passo. Talvez o mais fundamental de todos. Aquele que permite perceber a urgência de articular os mundos da cultura e do trabalho em uma nova perspectiva.

Como foi antecipado por André Barrocal (Carta Maior,23/1)”o governo pagará menos juros ao “mercado” até 2010, para economizar R$ 52,5 bilhões em quatro anos e despejá-los em obras de infra-estrutura”. Essa é a questão central. O resto, a parlapatice da direita e os discursos raivosos do PSOL são necessidades de quem precisa produzir significados e reconstruir identidades perdidas no tempo.

Quem, dentro do atual contexto, votar contra a CPMF estará apostando apenas no retrocesso. Na criação de embaraços que impeçam o pagamento de dívidas sociais de origem. Não é sensatez ou questão de princípios. Pelo contrário, é manifestação expressa da falta de ambos. É uma saudade perversa. Nada além disso.

Em tempo: aos leitores, os sinceros votos de um Feliz Natal e um ano novo repleto de boas notícias. Em 2008, estaremos de volta.

* Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, e colaborador do Jornal do Brasil e Observatório da Imprensa. Escreveu este artigo para Carta Maior.

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